sábado, 4 de junho de 2011

JORGE WASHINGTON, ATOR DE Ó PAÍ Ó, ELOGIA LÁZARO RAMOS, DIZ QUE NÃO QUER IR PRA GLOBO E POLEMIZA: "BRASIL É RACISTA"

Por Wallace Oliveira  para o blog SALVADOR COM H 

Fotos: Contigo!, Laércio Brasil e divulgação (nas duas últimas fotos, com Lázaro Ramos e entre Márcio Meirelles e Carlinhos Brown)


- Ele começou a atuar no grupo de teatro do Calabar, comunidade carente encravada na zona nobre de Salvador e hoje pacificada pela Polícia Militar. Em 1978, fez o IV Curso Livre de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba), com direção do renomado Deolindo Checcucci. Quando já estava desistindo do teatro comercial proposto na década de 80, viu ocasionalmente num jornal que o diretor e ex-Secretário Estadual da Cultura Márcio Meirelles havia se juntado ao Olodum para montar um grupo de teatro negro pautado na cultura afro.


E assim, o ator Jorge Washington, ex-militante do Movimento Negro, ingressava naquele que seria o passaporte mais importante da sua carreira artística: o Bando de Teatro Olodum, celeiro de grandes atores (a exemplo de Lázaro Ramos) e epicentro de uma das mais importantes movimentações artísticas do Brasil. No palco do velho TVV (Teatro Vila Velha), Jorge e seus colegas de Bando vivem até hoje grandes emoções, traduzidas em cada aplauso, em cada encenação, em cada atuação na qual eles dão vida aos dilemas do povo negro.


Depois de mais de 19 anos de Bando, Jorge se orgulha de ter participado de todas as montagens do grupo. E foram tantas: desde o Auto de Natal sobre o cotidiano de moradores do Pelourinho - que mais tarde se transformou em “Essa é a Nossa Praia”-, passando pelo polêmico “Cabaré da RRRaça”, espetáculo estreado em 1997 trazendo uma visão crítica sobre o racismo no Brasil; até o infanto-juvenil “Áfricas”, desenvolvido a partir da necessidade do Bando no diálogo com as crianças e dirigido por Chica Carelli...


Tamanho reconhecimento no teatro seguiu o percurso natural do cinema e da TV: enquanto a experiência na Sétima Arte o levou a vários sets de gravações, a TV lhe proporcionou acesso ao grande público depois de incorporar o personagem Mattias em Ó Pai Ó, um sucesso do cinema estendido a seriado de TV pela toda-poderosa Vênus Platinada (mais conhecida como Rede Globo). Mattias, personagem  tanto do filme como do seriado, é um vendedor ambulante de cafezinho, militante do Movimento Negro e casado com a baiana de acarajé.


Prestes a retornar às telonas com os filmes “O Homem que Não Dormia”, de Edgard Navarro (gravado no distrito de Igatu, na Chapada Diamantina, Bahia) e “Jardim das Folhas Sagradas”, de Póla Ribeiro (com estréia prevista para outubro de 2011), o combativo e politizado Jorge Washington concedeu entrevista exclusiva ao SalvadorcomH, na qual elogia Lázaro Ramos, fala sobre as experiências de Ó Pai Ó no cinema e TV, rotula o Brasil de racista e polemiza: “ator negro tem que se comportar como negro”.


SalvadorcomH - O Bando do Teatro Olodum (BTO) é, hoje, a sua grande fonte de inspiração e sobrevivência, mas, do início da sua trajetória até hoje, o caminho percorrido deve ter sido difícil. Em algum momento você pensou em desistir da profissão?
Jorge Washington (Jorge) - Jamais pensei em desistir. Essa palavra não existe no meu dicionário... Quando eu comecei a fazer teatro no Calabar, já recebi uma carga de inspiração, de militância, de combatividade, que me deram régua e compasso para não desistir jamais.


SalvadorcomH - O Bando foi criado em 1990 como parte integrante do bloco afro Olodum, mas se desgarrou dele e foi bater asas no Teatro Vila Velha, um dos espaços mais emblemáticos da cultura brasileira, sobretudo por ter abrigado os gritos e acordes do Tropicalismo nos anos 60. Pode-se dizer que o Bando foi o grande responsável pela revitalização do Vila Velha?
Jorge - O grande responsável não sei, mas posso dizer que foi um dos pilares que compõem essa sustentação, juntamente com os outros grupos residentes, como a Companhia dos Novos, o grupo Cereus (comandado por Hebe Alves), a visão ampla e aberta de Márcio Meirelles, a competência de Ângela Andrade, o vigor de Carlos Petrovich... Tudo isso junto fez que com o Vila retomasse o seu curso normal.


SalvadorcomH - Essa coisa de "teatro experimental negro" na Bahia tem uma tônica toda especial, já que o Estado é o berço da afrodescendência brasileira. Ao longo de mais de 20 anos de existência, o Bando legou excelentes frutos à cultura nacional, como Lázaro Ramos – que hoje reina soberano nas telas de uma das maiores emissoras de TV do mundo – e Ó Pai Ó, o filme que virou minissérie da mesma emissora (Globo). Você acha que o Bando foi um dos grandes responsáveis pela inserção do negro na TV de Jorge-Washington-foto-Larcio-Brasiluma forma mais digna - ou melhor, você acha que, depois do Bando, o negro passou a entrar pela porta da frente da TV?
Jorge – Para que isso acontecesse ocorreu um conjunto de fatores. O Movimento Negro, como um todo, já vem questionando essa postura da mídia de um modo geral há mais de 30 anos. Então, o Bando vem a reboque dessa luta quando Márcio Meirelles pensa em montar uma companhia de teatro negro e divulga isso. Essas pessoas que se juntam a esse desejo vêm também com a vontade de falar de coisas que a gente acha que não estão certas, de ir pra cima dessa mídia racista. E atores como Lázaro Ramos, com toda essa consciência, com essa formação, facilitam a nossa causa.


SalvadorcomH – Ó Pai Ó te levou ao cinema e à tela da Globo. Como foi fazer esses dois trabalhos e o que de mais marcante aconteceu nas gravações?
Jorge – Ó Pai Ó foi uma experiência fantástica, até porque começou no teatro com a “Trilogia do Pelô”, consistente nas peças Essa é Nossa PraiaÓ Pai Ó Bye Bye Pelô, todas do Bando de Teatro Olodum. A partir daí, Monique Gardenberg criou o roteiro para o cinema. Monique é uma grande admiradora do Bando e do poder de improvisação, da modo baiano de falar e que o Bando sabe reproduzir tão bem... É engraçado que ela queria dar o “corta” mas não conseguia, justamente por valorizar o nosso improviso. Tínhamos muita liberdade para criar. Já o seriado na Globo tinha, além de Monique, outros diretores: Carolina Jabor, Mauro Lima (diretor do filme Meu Nome Não é Johnny) e Olívia Guimarães (diretora de A Grande Família, seriado da Globo). O seriado foi uma baita experiência, justamente pelo fato da gente trabalhar com vários diretores diferentes. Aquilo foi um “intensivão” de televisão... Além disso, creio que a coesão daquele grupo de atores seja uma coisa ímpar na televisão brasileira até hoje.


SalvadorcomH - Essa coisa da posição do negro na sociedade brasileira é bem interessante, principalmente quando comparada à do negro dos Estados Unidos. É evidente que não dá pra comparar os dois países, mas é incrível a credibilidade que os norte-americanos conferem aos negros talentosos (isso, mesmo diante de um racismo historicamente violento, capaz de criar sociedades racistas como a Ku Klux Klan, por exemplo). Veja que a coisa chegou a tal ponto que hoje eles têm um presidente negro... Outros exemplos podem ser citados, como o de Oprah Winfrey (que deixou um programa de estrondoso sucesso na rede ABC para ser proprietária de sua própria emissora de TV), Úrsula Burns, presidenta da Xerox, além das inúmeras celebridades no cinema e na música. A Beyoncé brasileira muito provavelmente seria loira de olhos azuis... Por outro lado, só agora - depois de décadas de atraso - o Brasil começa a inserir atores negros em papéis de destaque nas telenovelas. Diante de todo esse panorama, você acredita que a televisão, a sociedade e as instituições jorge_washington_e_lazaro_ramosbrasileiras são racistas?
Jorge - Claro que o Brasil é um país racista! (risos) E no dia que a gente assumir isso vai ser mais fácil pra todo mundo, porque esses exemplos que você cita dos norte-americanos são exemplos mesmo, porque como lá a coisa se deu separando branco de um lado e negro de outro, você sabe quem é seu inimigo e cria estratégias para combatê-los. No Brasil esse racismo tido como "cordial" atrapalha, e atrapalha muito, porque trava a participação do negro na educação, na ascenção social, no mercado de trabalho... Ele te trava na vida, e o pior: dando risada da sua cara.


SalvadorcomH – Por quê o Bando de Teatro Olodum se desvencilhou do bloco afro? Houve algum desentendimento?
Jorge – Desde quando o Bando foi criado, em 1990, já ficou acertado que o Olodum nunca o manteria financeiramente e a gente teria liberdade para criação, pra escolher temas a serem abordados de uma forma independente. Então, até hoje nós temos uma relação de amizade, de carinho, e nunca teve nenhum desentendimento.


SalvadorcomH – É verdade que você rejeita trabalhos? Como é essa história? Tem até um caso de um comercial de uma montadora de automóveis...
Jorge – Eu sou um ator negro, e um ator negro tem que se comportar como negro. Qualquer papel que venha a desqualificar a raça negra e me for oferecido, eu estou fora. Outro dia uma produtora me ligou pra fazer um teste pra um comercial do carro Renault Clio. Eu topei. Duas horas depois ela me liga de volta dizendo que a produção me dispensou porque eu não tenho o perfil para o personagem do comercial. Aí eu questionei: Por quê? Negro não compra Renault Clio?


SalvadorcomH – Que tipo de personagem você rejeitaria "numa boa"? Existe isso ou a "geladeira vazia" é um sinal de que não se pode escolher (risos)?
Jorge – Eu vou escolher sim, não tem geladeira vazia certa! (risos) Porque não tem dinheiro que faça eu vender mais de 500 anos de história de luta da minha raça.


SalvadorcomH – Nos últimos anos, os baianos invadiram a tela da Globo: Lázaro Ramos, Vladimir Brichta, Wagner Moura, Daniel Boaventura, Emanuelle Araújo e Érico Brás (seu colega de Bando e de Ó Pai Ó, atualmente na série Tapas & Beijos ao lado de Andrea Beltrão, Vladimir e Fernanda Torres) são apenas alguns nomes dessa grande leva. Você já foi sondado pela Globo ou pela Record? É uma meta sua ir para a TV através de uma telenovela?
Jorge – Sem nenhuma modéstia, eu não tenho vontade nenhuma de sair da Bahia pra fazer TV no Sul. Estou muito feliz com o teatro que faço com o Bando de Teatro Olodum. Nós fazemos teatro aqui com muita dignidade, fazemos cinema, fazemos televisão, sem precisar sair da Bahia. A gente tem que parar com essa idéia de que  fazer sucesso é estar na tela da Globo. As respostas que eu tenho do público com espétaculos como "Cabaré da RRRraça", "Áfricas" e mais recentemente "Bença" me sugerem que estou no caminho certo.


jorge_washington_com_marcio_meirelles_e_carlinhos_brownSalvadorcomH – Fale um pouco sobre a dramaturgia baiana no teatro, na TV e no cinema. Como estamos e para onde vamos nesse terreno? Você acha que a televisão baiana precisa investir em produção regional ou isso é materialmente inviável?
Jorge – Eu acho o teatro baiano um  dos melhores do mundo, não deve nada a ninguém. O nosso cinema está aí, ganhando prêmios pelo mundo afora, como em Cidade BaixaJardim das Folhas Sagradas e daqui a pouco eu estarei aí na telona com O Homem que Não Dormia, de Edgar Navarro. A regionalização da TV já passou da hora. A gente gosta de se ver na TV, e se ver como a gente é de verdade!


SalvadorcomH – O que falta ao Brasil para dignificar a raça negra?
Jorge – Primeiro, há de se fazer uma correção: a raça negra é muito digna. Agora, falta ao Brasil assumir que é um país racista e que esse racismo precisar ser abolido. O Brasil precisa entender que a diferença é mais que saudável, que ela é essencial para a formação de uma nação. Imagine se tudo fosse azul? Seria um saco, né? (risos)

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